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Mostrando postagens de 2014

À francesa

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Hoje uma borboleta negra cruzou o meu caminho. Uma transmutação sucedeu. Se as asas bateram é que voei meu eu. Meu pai sempre dizia: - Filha, na vida a gente tem de saber a hora certa de chegar e a hora certa de sair. Mas eu só queria saber o "como",  nunca atentava para o "quando". Como saber? Meu pai era tão sábio quanto o oráculo chinês. Virginiano que era, sempre soube seu timing, com critérios de detalhe e suas cem-razões. Tudo com direito a painéis meteorológicos e percepção cronometrada de quebras de rotina. Eu, que sempre tive pouca habilidade no mundo concreto, minha ação sempre foi fruto de rompantes: o instinto cego. Sendo amiga do destino, ele presenteava minhas maiores dores com o escárnio da beleza: o negrume de borboletas no momento da partida, nas mortes de amor. De fato, enquanto o pesadelo de minhas amigas incluía andar na rua pelada sem se dar conta, voar e cair de precipícios, meu maior medo era o ataque transformador.

Breve

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Num momento de descuido ele atravessa a minha janela... um Domingo de Paz. Deixei-o entrar, se acomodar. Veio para um café. Sorriu. Seduziu. Tocou meu corpo com o frescor de fim de tarde. Beijou, bebeu, acariciou e, cheio de senões, assoprou: - Em breve eu vou. Não posso ficar. - Mas quem lhe deseja para além dos instantes? A beleza está no pouso. É justo o pousar... Nos despedimos. Agradeci. Foi então que avoei.

Nuvem

Vejo o sol nascer rompendo a escuridão e a noite aproximar-se minguando a lucidez da visão. Uma ode à Lua ladra este cão... Eu só sei viver nos extremos. Minha agonia é o interlúdio: este ocaso solitário das tardes que se arrastam, nos transpassam desejosas de amornar a paixão - equilibrar os excessos. Dependurada em meus dias, nego a transformação do tempo, fico imune à sua imagem de nuvem - Revivo os espasmos de nosso amor incompleto.

Prece

Faça-se de mim uma oração das terras de longe! Porque milhas me fazem crescer, porque preciso situar-me no não-lugar da sua cama, debaixo do seu edredom - essa imensa colcha de retalhos  de tudo o que não pertenci, de todo o meu vir-a-ser... A vida é tão frágil, breve, cheia de traços leves... - ensina-me a arte da sutileza! Quero me perder de hojes: no cheiro do ar, no gosto do vento, na fotografia desses mil olhares... Poder abrir brechas no coração asmático, aprender o ser-breve com a caneta.

La-passante

Recebi uma foto da nossa felicidade desnuda de tempos atrás... Blue jeans, motocicletas e cachaça de gengibre. O bar da cachaça trazia sua crônica às calçadas. Na Lapa, outro aroma submerso de cores pastéis... O não-ser dali concedia-nos asas de desbravador A festa Maracangalha carregava a poesia da vida comunal dos Novos Baianos - É que éramos retirantes, seu moço, de um bairro distante, fluíamos de amor aos goles de cerveja - ela ainda era só esplendor. Uma palavra: pureza. Neste dia eu me libertava de um amor platônico que me consumira dois anos acadêmicos. Resolvemos dançar a dor. Ali perto, na praça da Cruz Vermelha, ainda não rolava o Samba do Bigode, mas um encontro regular de gente - gente querendo transcender o ego, transgredir. Assistíamos filmes marxistas, líamos Marx como poesia, e dividíamos nossas humanidades da psicanálise anterior - buscávamos emancipação e amores livres. Ainda não era materialismo, era o desejo de comungar prescindindo de Deus - ele e

Finado

Não é falta de amor, as vezes ele é grande, bem como grande é a gratidão. É que você me exauriu... - Certas pessoas exaurem a gente, assim sem razão. Já sou incapaz de restabelecer contato, já quebrei a ponte. Talvez porque precise ser ilha: ter de morrer um velho, ter de brotar um novo... Não houve acordo. Morri em posse do mesmo documento. Perdoe estas sem-razões, tamanho desconserto... Se há de nascer algo, tenho de me parir primeiro.

Farto

... E foi entre o voluntário e o involuntário do amor que você em mim me empobreceu, até virar triste o que fora êxtase. No ato, eu insaciável, chorei à procura de um significado que dignificasse o inadiável... A carne trêmula. Só carne.

Tua ausência

Tua ausência me libera da tua ausência Tua ausência libera a minha ausência, - meu zelo por miudezas, minhas plantas, meu cão, meu direito, meu eu mesmo. Vou ao cinema, embelezo-me, atraio, danço como um pavão... Vôo à tua sombra. Concedo-me o tempo que lhe desmancho, lhe dedico, lhe curvo. Viro bicho, puro instinto, rebelde, livre, lindo... triste. Um coração que nasceu cativo.

Ponto cego

Tua ida, tua vinda... - este pêndulo! me interioriza. E é neste ponto cego que hei de encontrar forças para tocar nosso barco, para remar o teu tempo. Só; comigo, eu espero... vou me destoando, nidificando, desabotoando, emudecendo. - precipito, esquento, seco viro cinzas... Não faz mal. Há de ser comigo, coração inseguro! Eu seguro - com forças que ainda não tenho no meu ponto cego - anuvio, faço sol... Eu ainda espero.

Uma casinha modesta

Construí uma casinha modesta, de madeira e alvenaria no coração da cidade. Verde na varanda, bebedouro de beija-flores na janela, borboletas polinizadoras, um aquário. Água sempre fresca da velha moringa de barro... Chiquinho ainda espalha tapetes, agora na porta principal da casa. Frida espalha sua poesia-de-andar-felina nas tábuas corridas da sala. À sombra, o reflexo... Paredes sustentam sedutoras e repousadas mulatas de Di Cavalcanti. Micos habitam mangueiras. Vejo um ninho de pássaros... azul por todos os lados, tudo a apenas cinco minutos do asfalto engarrafado. À noite apavoram-me indefesos morcegos. O lar é feito de aconchego, com vista para o cinza-alto dos "apertamentos". Preciso de tua mudança para dormir doce em teus braços e daquela ajuda com a escritura (!): são dois quartos, uma cozinha; banheiro, sala, varanda, tintas; letras harmônicas justapostas a cada passo, cada traço da arquiteta. A mesa é longa para o pão, para a família, amigos-frutos, as seme

Grávida

Eu estou grávida do Senhor do Tempo, do amor que tenho, estou apaixonada. Ando por aí, assim grávida... conhecendo recônditos alheios, mapeando satélites calada, lendo borras de café nas mãos É que estou grávida, fervilhando por dentro... Vou parir vento, um furacão! Peitos jorram-me o leite, as noites varrem meu leito Eu segui todos os preceitos: pílulas, tabelas, fómulas, condão. Não vês que estou pronta se estou grávida de contas, marés, reflexos, obsessão?... Não me pacientes com este fórceps... Tempo me escorre... Não!

Reajuste

Não se pode esquecer a porta aberta, nem de regar as plantas. Temos de amar diariamente nossos cachorros e abrir as janelas pelas manhãs... Não esquecer também a militância, nem a humanidade, nem o sorriso amigo quando em nós, tudo está em partes. É preciso quebrar narcisismos sem deixar de lado a autoconfiança. Ser pragmáticos! e agricultores de sonhos, para que em nós eles não morram - passaporte de viagem... Mas é preciso ser forte e saber ganhar dinheiro! Amar nossos trabalhos estranhados, sucumbir à rotina, superar os amores inacabados, ser feliz e - hai de mim, o mais triste! - cortar o amor do outro, porque criamos as escolhas e para alguns amores somos incapazes. Mas não! Não se pode amar todos os amores! Não pode fugir, nunca fingir! Tem de saber como o tempo a amar devagarinho com intensidade, poder viver de arte. Engolir o mundo como quem admira a paisagem... - E quem é que limpa o filtro de tamanha reciclagem? Não esquecer a sensibilidade. Ser boêmio e cuid

Pontuações

Por quê o uso de tantos pontos incomodava o meu redator em dois mil e oito? Eu era cheia de pontos. finais. Quando criança, cerrada em universo recluso, excuso, de sobreviver, as exclamações! E do modo mais puro conhecia as verdades todas do mundo. Foi quando estive mais pronta que o mestre me soprou! Dois mil e onze. Término de longo namoro. O desconhecido ao longe, outro mar adentro... Quem roubou meu eu? - Interrogações, quem era eu? Um "Só". para tornar-me em dois mil e quatorze assim reticente... Todinha assim, contingente. Experiencial.

Quero ser justo

De manhã quis escrever-te um poema, mas calei. Pensei em você com meu olhar, esse triste; que, responsável, se despede. Neguei. À tarde quis compartilhar com você coisas do Rio, da pátria, de Vinícius, da pior solidão que um homem pode ter e sentir... Mais uma vez me calei, pois que o poetinha falou-me, revelou-me no processo mesmo do medo de fazer ferir. Com uma colher de feijão grosso, do almoço, esqueci, atrapalhando a digestão, ludibriando o mal-estar, encerrando-me em mim. Neguei para continuar o mundo que nos transpassa. Sorri. Amo é amar-te, menina! Acontece que simbiose cessa o coração, acontece que sou triste e que sou amor para dar até o momento de morrer mansinho, sem grito, um pio preso ao silêncio viril. Não foi a langerie, nem meu desejo doido, o teu cheiro doce ainda entranhado em mim... Acontece que chorei quando mereci seu coração, seu lar e, para digerir esse feijão, o café, toda a sua gratidão, à noite traguei tudo até o fim... Quero ser justo. (João M

Música para Eva

Em teu corpo repousam meus pecados e no silêncio tácito, a fluidez de dois mundos que se encaixam violados, apavorados, estremecidos, serpenteados, selvageria de gatos gemidos protegidos no universo deste quarto, que segreda o vão do mundo... Transgessora é a dança das costelas de um Adão recusado. Eu espelhado mulher comi maçãs suculentas do teu corpo só para borrar-lhe as chagas cosidas, caladas, jazidas em teus lábios de Vênus, dos astros... Definir assim o que indefiniu-se por cautela no corpo dela Em teu espelho sou ela, redimida Eva, cada dia mais mulher...

Fragmentos suspensos

Incenso para elevar-me a alma, cigarros para enraizar-me corpo, livros para nutrir o espírito... Esta é a fórmula da minha transcendência sexta-feirística. E no stop suspenso da bailarina o acalanto ao coração que recompõe as energias para o próximo passo em falso, ritmado, cada dia mais equilibrado e agitado do seu amor.

Miudezas da cidade

Saudade de amar essas coisinhas pequenas... um polaroide, uma ilusão de ótica do papel que percorre para o cavalo andar... Hoje vi que embruteci ao tocar as miudezas da cidade... Os olhos fincados em coisas tão grandes e alheias... Amor que se dá ao outro em pensamento, pensamento que não se pode materializar... Estas coisas que a gente agarra tem mais poesia. Beleza de encantar o olhar... que não vê o tempo que dança, que não vislumbra o outro atirando ao vento contas do nosso afeto, a vagar... Do amor, trago no peito duras arestas enquanto estas miudezas degelam ternura milenar. No meu povoado ainda recebo circos, ouço causos, tenho comigo um grande disco solar; o maná, ilusionismos; maravilhas, miudezas... teu olhar de quarta-feira isento de rastros, ausente de lastros... que não deixem cacos em mim.

Frevo mulher

Bem que se tenta escapar da terra Mas sempre ela, buscando gestação... Quer ser frutos quando é areia Único medo...  Solidão entre homens-inverno, outono, verão... cortante busca de definição para descortinar primaveras... e parir um tempo fluido que não recluse, não recuse o coração. Quem sabe o Tempo  não espalhou sua  cabeleira... Quem sabe os olhos  se restrinjam aos que espelhem  sua natureza... mulher, mulher, mulher... Barriga de vento. Mulher! próxima estação...

Para trovejar fora de mim...

Sinto sono, mas já não posso dormir. Instrumentos de sentir são mais humildes: um cinzeiro, fumaça, escuro, alguma dor. Tela fria de computador... Vou esperar chuva cair parar de relampejar meu cachorro dormir... aprendi a me dobrar mas parei de sentir... Por amor abafei os sentidos até o amor se evaporar de mim, me restar só um menino... E eu a buscar aonde enfim a chama se apagou o instante que descongelou, Pra onde foi o meu amor quando de mim resolveu partir?... Hei de esperar chuva cair eu voltar a sentir desde aquilo que em mim ficou... o que não fiz por amor escrever em tela de computador. que não lhe rabiscassem coisas duras nessa sua finura, velho amor!... Vou esperar chuva cair... Trovejar fora de mim... Re-ligar tudo aquilo que estagnou. Mas pra onde é que foi o meu amor? Porque foi que começou? Diga enfim, se acabou.