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Com o perdão da Palavra

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A poesia tem que merecê-la e há de encontrar-se pronta quando as Musas tocarem-lhe o ombro, quando o divino sopro tocar-lhe a face para que toques de cumprir sua sagrada tarefa. E o deliciar-se da Poesia que se escreve deve ser circunscrita ao prazer de ser levada, conduzida pela pena (duras penas!...) Poesia, hei de escrever de hoje em diante, sempre com letra maiúscula, porque exprime um estado de graça, um estado de calma, um estado de alma; do ser, uma ausência-presença. Quem fui eu e por que caminhos andei para maldizer a palavra, o pensamento e minha Musa Rendadeira? Pois que fui ingrata e, dela, escarnecida. Com o perdão da Palavra, Ela, rarefeita, aprisionou-me o peito e me vi a pescá-la com esforço, a perscrutar-lhe o pensamento para mergulhar em suas águas reparadoras e libertar meus prisioneiros do Calabouço do Silêncio. Hoje escrevo para ajoelhar-me ao Divino-que-tece desde as primeiras veias ao abraço frio da terra, Àquele que, Sendo, m

Os ensinos de uma criança de 7

Para Ana Clara Maia, uma amiga encantada. Hoje o seu dente caiu e eu pude vivenciar o momento derradeiro,  o medo, aquela dor agudinha, o sangue,  a coragem, a bravura dos sonhos de criança  numa pequena morte que é pura expressão da vida:  passagem, semelhante aquela que você queria atravessar num mar de instabilidade inexplicável  dentro de um pequeno-grande coração de um infante... Você sabe que já bem-te-vi muito bravo,  que já bem-te-vi insistente,  que já bem-te-vi ilhado... Hoje, porém, o seu dente caiu e a passagem foi alegre. Teve festa no céu.  Com a fada dos dentes, eu recebi este tesouro seu: - Ai, se eu tivesse ainda um coração de criança,  que sente saudades,  mas vê que a passagem é viagem e esperança,  alegria e mistério,  rota de fuga  e vida mais viva nas sete cores do Universo! 

Ponte para Pasárgada

Galo cantou no orvalho da madrugada. Poesia chorou nos recônditos de mim. Libertei um prisioneiro às seis horas da tarde, nesse tempo misterioso que não é dia, que não é noite, que é o vazio dos sentidos - interlúdio, passagem o silêncio de Deus. Nessa hora, as palavras não conseguem velejar estão em vigília num tempo morto. Sinto o peso do nada. Ele nada, tu nadas, eu nada posso saber do mar. Quem é que sabe nadar? Perscruto o tempo - aperto o botão de rosa para saber do que dela sai. Machuco a rosa e nada de metafísico descubro no nada. Quisera me espremer para desvelar uma palavra... mas o nada, o nada o nada o nada. nada de chão, nada de cão, nada de pão, nada de beijo, nada de água. Olho pro vento, quisera conhecer as indagações do tempo... mas ele também não é nada. Deus fez o homem que cria que sonha que pensa e filoso-fia, rei de uma angústia desconhecida, - não pode valer-se é de nada!

Indagações de uma viúva negra

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Uma cantiga de infância se repete e se repete na minha cabeça. É a música da Dona Aranha. A tradição indígena a conhece por vó aranha, mas pra mim ela é uma viúva cheia de sex appeal, a sinistra viúva negra.  Sei que quando adormeço, ela vela meu sonho - presença teimosa e insistente, pra me relembrar daquilo que quero esquecer, ou daquilo que sou? É verdade que matei todos os homens que se relacionaram comigo. Sou eu que teço todas as realidades e prendo o infeliz, mas acho sempre que sou eu a presa. Depois eu engulo, mato e calo, dentro de mim para que não se repita o trágico fim da minha infância.  Perguntei-me com coragem ontem antes de dormir... o que será que está por detrás do instinto da viúva negra?, por que ela re-produz e re-produz esse ato criativo e assassino sem cessar? Ela deve ter tido o mesmo pai e a mesma mãe que eu... Mas eu mato amor-tecida, ou amor-teço para matar.  As aranhas são escritoras, assim como eu, e não param de criar e tecer armadilhas. 

Lágrimas de estrelas

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A crisálida está rompendo  e na alma chove uma chuva sem estio. Quatro anos do temporal de Macondo  jorrando dentro da casa. A menina carregava baldes d´água e desentupia os canos O pai que não parava de trabalhar, hoje não saiu.  A mãe que não fala, danou-se a contar causos O agregado que aninhava-se no banco de areia  deparou-se com a imensa correnteza. A chuva veio de fora e eu trovejava de dentro, porque vi uma vida se desenrolando dentro de outra vida - mas estas coisas não podem ser ditas. Só sei que eu olhava, de dentro, a menina,  de cabelo roxo, na primavera da vida. - que tarefa ingrata desentupir canos!  Acho que se ela pudesse correr, ela corria, mas como interromper o fluxo? A chuva chovia.  Alguém há de pôr as mãos na sujeira dessa alma coletiva mesmo sem compreender e praguejando contra a vida, porque sempre existe uma inteligência feita para nos escapulir.  Eu vi a água subir, e subia, e subia, até que chegou

Era uma casa muito engraçada

Era uma casa muito engraçada, De três quartos, três banheiros, varandas, chão e teto. Era feita com muito esmero para mamãe, marido, A filha mais velha, a mais nova e o agregado: um cachorrinho. Do adeus que mamãe deu à vovó, ela criou uma ilha pra gente morar e ser feliz: ali na Rua dos Bobos, no número zero. Era uma casa grande e confortável que, então, encolheu. Filhinha mais nova saiu para uma ilha mais distante e quando retornava de mochila para tomar água, já não cabia. E mamãe dizia pra filhinha: - está tudo bem. Tem visita no quarto. Filhinha mais nova dormia na sala. E mamãe disse outra vez: - Tem outra visita, aqui também. Filhinha mais velha e filhinha mais nova se apertaram então em um quarto. A mais velha queria construir uma ponte, - se sentia toda poderosa! E saía e voltava, se irritava com as fachadas rebocadas, com a ilusão de ótica que via na casa. Eram todos felizes. Filha mais velha estudava no banheiro pra não atrapalhar as visitas. Ma

Lua Nova

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Sonhei que não mais falava   e mergulhava em um mundo de imagens   através de uma câmara secreta.   Dentro da caixa eu pendurava em um varal pedaços de medo,    ódio, vergonha e pureza   como uma artista.   Agora, para  que  as palavras?   Penetrava o Universo da alma   que engoliu uma cebola inteira   para sustentá-la presa   na gravidade de uma goela.   Chorando, a gente degela o que vem antes das palavras   no interior da existência.   Agora, eu tratava era de cor, brilho e saturação,   de tempo.   momento a momento...   Com zelo e beleza, reconstruía a memória inteira   rarefeita   no raio da manhã.