Indagações de uma viúva negra

Uma cantiga de infância se repete e se repete na minha cabeça. É a música da Dona Aranha. A tradição indígena a conhece por vó aranha, mas pra mim ela é uma viúva cheia de sex appeal, a sinistra viúva negra. 
Sei que quando adormeço, ela vela meu sonho - presença teimosa e insistente, pra me relembrar daquilo que quero esquecer, ou daquilo que sou?

É verdade que matei todos os homens que se relacionaram comigo. Sou eu que teço todas as realidades e prendo o infeliz, mas acho sempre que sou eu a presa. Depois eu engulo, mato e calo, dentro de mim para que não se repita o trágico fim da minha infância. 

Perguntei-me com coragem ontem antes de dormir... o que será que está por detrás do instinto da viúva negra?, por que ela re-produz e re-produz esse ato criativo e assassino sem cessar? Ela deve ter tido o mesmo pai e a mesma mãe que eu... Mas eu mato amor-tecida, ou amor-teço para matar. 

As aranhas são escritoras, assim como eu, e não param de criar e tecer armadilhas. 
Mas eu acho que a viúva negra já amou algum dia... 
Porque traída e enganada, ficou assim tão grande. 

Minha bisavó era costureira e criou três filhos sozinha. Costurou a sua vida e a deles
e ensinou isso para minha avó. Minha mãe também amou, mas retornou à sua origem
ani-má. Acho que a aranha me chama, mas eu não quero olhar pra ela. 

Como hei de continuar a tecer sem aniquilar mais ninguém?
Posso tecer um novo homem?, um novo código genético?, trair a minha espécie?
Só que elas sondam lá nas profundezas... E eu teria que esconder um segredo do meu próprio instinto assustado, reativo... Não. Esse caminho não é possível. Quando eu teço esse plano, alguém já viu

porque fica plasmado em minhas redes invisíveis, como tudo que eu sou, como tudo de mim...
COM-FIO...Isso! Acabei por tecer uma nova palavra. Vem da COM-FIANÇA...
Mas quem será que dá a fiança?

Desesperadamente COM-FIO no homem que bate agora na minha porta?
Ou COM-FIO no vento, que traz a todo tempo a matéria que eu preciso para criar?
Confiança... que palavra estranha que agora teço... não sei mais em que fio que isso vai dar.




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Coisas de partir

acontece que

tempo zero