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Tempurá de tempo

Perdi muito tempo lutando contra o tempo, gastei forças para simplesmente ter forças, e tenho visto sempre que são só as contingências e circunstâncias que constroem uma pessoa. Um dia não mais quis ser coisa, mas para além de sujeito, desalojei meu Deus fraco e fui de mim mesma impostora por muito querer ser algo... Nada fui senão ser angustiado... Hoje valorizo como nunca toda a minha falta de grana, de apoio, de limite, de escudo e de cultura... tudo aquilo que me limita, porque é essa matéria, que constantemente me chuta da barriga de minha mãe, que origina a minha necessidade de guerrear na vida, o meu desencaixe porém sem gaiola e toda a fome que sinto por idéias e sentidos que dignificam minha velha busca torta... Um dia procurei uma analista para ser de mim minha própria escultora... Estúpida! Na vida o que é preciso é escola para ser o que já se é. Não posso ser outra, nem aquela que já fui outrora...  porque tudo, exatamente tudo que tracei, planejei, alinhavei, ar

Lavapiés

É preciso ver a sujeira das ruas, a podridão do consumo, a oferta É preciso ser mulher e sentir-se comida pela tradição de Maomé num recanto árabe dessa multidão cosmopolita, que reclama seu espaço e um cigarro numa dessas noites quaisquer É preciso conhecer a fundo a viagem desses becos e seus castelos de seringa e fumo, o peso do tempo que um dia lhe reclama o rosto É preciso reconhecer-se parte desse mau cheiro, pegar-se mentindo, porque uma hora a cidade vai pra sua casa e lá estás nessa jornada, ao lado das putas, dos drogados, bêbados, pedintes, imigrantes, bate-carteiras, malabaristas, sem documentos... E te vestes o mesmo andar, o mesmo tom e, com o tempo, temes menos, incorporas... pois vês que nada possuis além de um si mesmo que, dia a dia, enfrenta o espelho e conhece o rosto da solidão... E escutas no bareco que Seu Jorge foi acertar as contas com o "chifrudo"; se planeja a ocupação, que lhe promete uma melhor cama e um balcão que compartirás com o compan

Cuitelinho de Maria Marta

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... E cantava como quem caminha ao meio fio  como se qualquer vacilo  profanasse o canto divino escorrido pela sua boca. Ali, dela, se ausentava nela o que podía como se fôra ela mesma um obstáculo furtivo da sua música que nascia  da mente de Chico na extensão do corpo dela anímico, trevo de catorze folhas.

Irmã de rapina

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(Fonte: www.revistamundoeco.com.br) Um belo dia escolheu a coruja para sua realidade anímica, hipótese que, de começo, rechacei por achar que o signo fôra corrompido pelo nosso vulgar sentido de fidelidade; na verdade o que temia eram suas poderosas asas de rapina, a velar nessas escuras madrugadas, sozinha. Existe sempre algo de Narciso no amor que a gente sente, na proteção que dedicamos através dos braços os quais não temos... que nos torna heróis da gente mesmo... E foi assim, sem sentir, que me instalei no posto de vigília e fui eu mesma a mãe-rapina, a cuidar-te de qualquer precoce voo largo, distante, perigoso, para que nunca portastes os arranhões tais quais os me criaram a vida. Mas foi inútil, pois que criei uma teimosa ave, mais sagaz nos furtos de si e no engenho que eu mesma... Arranquei-me as penas! Do seu mítico nome, hoje, sabedoria eu vejo, o maior dos apelos... E naquele ímpeto, que no homem que desassume um posto é egoísmo e no animal que voa, natural, que

Tabacalera

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(José Manuel Ballester, exposição"Bosques de Luz", em La Tabacalera) Hoje, em vaguidão, fui a uma exposição de fotografia, numa antiga fábrica de tabacos em Lavapiés - o "Bronx" cosmopolita de Madrid. Me mudei para ali porque queria entender a essência da solidão.  Batuques batidos em ecos espaçados na outra entrada, som de goteiras nos velhos canos... Algo precisou rejuvenescer-se ali...  Mas nada tinha de macabro, nada tinha de "outro mundo" no ranger da madeira condicionada aos meus passos, aquele era só o meu mundo, de presenças "curiosas", efêmeras e congeladas como a linguagem, que só se degela no próprio pensar. Não nasci com o dom de brincar com as palavras, neologizar... Nesse ínterim, encontrei-me a mim, a caminho da natureza morta visível, na linguagem em carne composta, para captar aquele mero estalo, sorrateiro, nascente, primeira gota de vida que ainda não endureceu corrompida pelos signos... Nesse cenário penetran

Economia, necessidade subjetiva

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"Lo que separa el "pensamiento" de un Balzac del de un Flaubert es una variación de escuela; lo que opone sus escrituras es una ruptura social, en el instante mismo en que dos estructuras económicas se imbrican, arrastrando en su articulación cambios decisivos de mentalidad y de conciencia." (Barthes, en "El grado cero de la escritura") Há quatro anos atrás, cheia de sonhos nas costas e indecisão, escolhi o curso de economia, sem saber ao certo como chegar, com tanta materialidade, a um mundo essencial. Como dizia a minha gente, por que não o universo das letras, a história, a arte? Mas lá existia obstinação. Uma necessidade subjetiva de firmar-me, focar a visão daquele olhar perdido e solitário que trago comigo. A busca por libertação entre as cadeias de conceitos rasos, fatalistas e utilitários... Rebelião. Revolução, que casa perfeitamente com as minhas metamorfoses e contradição. Um caminho inconsciente de um ser párea, para sempre párea... Des

Desmundo

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rio intransponível, que se conecta comigo e me separa cada vez mais do mundo... Desmundo. Se em ti não mergulho, me alieno de mim mesmo desconheço, coisifico.  Se em ti me perco, me perco... "The sick child", Edvard Munch