Lavapiés


É preciso ver a sujeira das ruas, a podridão do consumo, a oferta
É preciso ser mulher e sentir-se comida pela tradição de Maomé num recanto árabe dessa multidão cosmopolita, que reclama seu espaço e um cigarro numa dessas noites quaisquer
É preciso conhecer a fundo a viagem desses becos e seus castelos de seringa e fumo, o peso do tempo que um dia lhe reclama o rosto
É preciso reconhecer-se parte desse mau cheiro, pegar-se mentindo,
porque uma hora a cidade vai pra sua casa e lá estás nessa jornada, ao lado das putas, dos drogados, bêbados, pedintes, imigrantes, bate-carteiras, malabaristas, sem documentos... E te vestes o mesmo andar, o mesmo tom e, com o tempo, temes menos, incorporas...
pois vês que nada possuis além de um si mesmo que, dia a dia, enfrenta o espelho e conhece o rosto da solidão...
E escutas no bareco que Seu Jorge foi acertar as contas com o "chifrudo"; se planeja a ocupação,
que lhe promete uma melhor cama e um balcão que compartirás com o companheiro que recebeu do novo chefe outra demissão... são os recortes... a crise...
É... precisa ser forte, e saber falar alto, e esquecer o passado que lhe foi todo presenteado com a falsa promessa de imortalidade familiar.
São esses escuros campos de basquete os que melhor sabem carregar o peso de um país com seus novos passaportes do que toda a embaixada do reino da Espanha. É aqui que pulsam as veias da crise européia, americana, mundial, sem nenhuma formalidade de papel e contrato, porque é o lado pobre que paga caro...
E nesses dias iguais, tens a oportunidade impagável de conhecer o seu guru, Seu Muhamed do kebab, o homem mais sábio de todos esses claustros... nele descobres a importância do saber viver depois de descobrires a forma do não.
E então, quando finalmente perderes sua falsa ideia de essencialidade e admitires sua presença circunstancial, poderás conhecer a alma no olhar dessa gente que lhe dá o que não tem, que de dia se esconde, mas de noite sempre volta pra casa e dá de comer aos seus animais...

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