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Questão de gênero

I   - Luiza ... Falava de si em terceira pessoa. Escrevia só porque morria, para identificar o maremoto que dentro de si cabia. Seu orgulho era sentir o que sentia... Senhora de mãos escorregadias. Nada lhe pertencia. Apegou-se, então, aos laços presentes e invisíveis que constituía, e ao seu caderninho de remendos e poesia. Assim se dividia: a mulher e a menina. Há quem diga que era triste, há quem diga que de tanta felicidade Luiza luzia... Dependia do olhar de quem a via? Especulo que era prolixa. E via-se doente como o mundo de jornais expressos e internet informativa, só porque falava em tópicos, como quem quer desnudar-se, desmanchar-se, sem trazer incômodos. Respirava com cuidado. Já lhe haviam dito que carregava consigo algo intimidador. Talvez porque não perdia a mania de ir até o último gole, expondo-se a maiores danos na vida, e há sempre um sadismo na dor que se sente. Ter um corpo era por si só, um desafio. Por isso, a cada queda, mais força e fé ganhava na vida

Moça na janela

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Papo de bar, papo de vida... "Mulheres são complicadas! Indecifráveis! Vede a vida..." O direito de discordar. ... Descobriu então nos olhos do amado: era amor pra toda a vida! Jantaram. Conheceram-se. Diplomáticos. Economistas. N'outro dia, um chamado. Inesperado. Uma festa. Boas vindas... Haxixe paquistanês. Maconha senegalesa. Gin tônica número zero. Viajaram... O fogo e a balança na casa do peixe. Um funk. Um soul. O beijo... Um beijo. Mais um. Mais outro. Vento frio... Mãos calientes. O melhor que ela fazia? Dançar-se de música. Seu nome era lira. E luna... Uma porta. Um beijo. Uma escada. Um aperto. Um chá... Um quarto. Escuro. Luminária acesa. Dança devota. Compartilhada. Recíproca. Amou quem lhe cuidou, a menina. Ele vinha de casa. Veio à casa. Gentil. Os olhos claros. ...Palavras que constroem afeto. Cupido passivo e contente. - "Confia"... "Seguro, me liga". - "Ele não joga". "Já vi." Olho

Papel Canson

Poderia ter feito um milhão de coisas antes que a chama se apagasse... Se eu fosse tonta o bastante pra não sentir medo, eternizar-te-ia naqueles momentos sublimes... Não sairia jamais de casa, deixaria mais amores em versos e beijos de bom dia eterno... Quanto aos seus olhos tristes, repousados, dissonantes naquele corpo primitivo que amei tanto, que senti tanto, ainda gritam, suplicando: expressão!... Mas seus traços um dia me escaparam à visão... Se, talvez, implodisse menos e te engolisse com antropofogia e berração de paixões em aquarela, te exaurisse a recordação... Mas sangro só de entropia, em tua geleira turvo-cinza, Imaterial, a reunir pedaços de tempo, que esgotar-se-ão de dureza e finura, em desejo e loucura... Curvilíneo esboço, riscado em papel Canson!...

I

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(imagem: autor desconhecido) Peixe tem alma coletiva... Fui particionada. Escutastes? Mutilada! Choro de dores invisíveis... Preciso encontrar-me meu cardume.

Estranho hóspede

Esses dias conheci alguém que trouxe para morar na minha casa, que me desalojava a cada dia, a cada palavra que de mim saía... Eu expunha, dizia, pois trabalhara o projeto de construir a ponte que ligasse os pólos da gente que se perdia... Só havia o silêncio. Então comecei a preencher os espaços... Lhe contei do meu passado, lhe pus a par das minhas feridas e, a cada frase à ventania, objetos da minha casa sumiam... Primeiro os lençóis da cama, depois o envoltório do colchão. E as malas... - Já não podia partir... As horas passavam, os dias, as coisas, e mais e mais eu me apegava àquele estranho distante, que comeu da minha comida. Por último, se foram as chaves de casa... Como sou desajeitada! Uma pária... Fiz-me então não-presença, só pra não desconfortar... ... Palavras íntimas dentre nuvens negras são corrente arquitetada de afeto. ... Ontem chorei detrás da cortina. Chiquitita de mim... Nunca mais tive casa desde a necessidade de amar e ser amada que sempre se apossara

Fragmento

...Não dispunha de armas que lha abrigassem do vento das próprias palavras. Descortinava-se. Desculpava-se, como desajeito de ser ela... ...Reinventar-se! Eis o novo-velho lema.

Eu te amo. Só não lembro...

Deixei meu amor para viver na Espanha. Aquele amor terno, doce e gentil... Seus cabelos eram de primavera e floresciam naturalmente. Tinham vida própria e se encarapinhavam, claros e suaves, no meu rosto, na minha nuca... Não. Meu bem não tinha cabelos de primavera. Talvez seus cabelos fossem invernais, de tão escuros, indiferentes, cortantes, de lado - como um abrigo velho ao sentir as rodas mecânicas de um aquecedor elétrico...  Era isso aquele meu amor... Inverno de aquecedor! E não era doce, terno, tampouco gentil... Era indiferença presente, carícias calientes, desejo, intriga...  Não. Era volúpia! E dor... Ai, o meu amor... Era brasileiro, como Deus. Ou colombiano de sangue grosso... Um Buendía da sofrida estirpe. Sobrevivente!  Mi cariño tinha nos dentes as cores de sua bandeira e o cheiro doce do próprio fumo... Olhar grave de quem não sorria.  Era lindo! Mas intocável. O que fazia dos contatos íntimos o não contato. Era mesmo um amor falhado. Com os beijo