Questão de gênero


I - Luiza


... Falava de si em terceira pessoa. Escrevia só porque morria, para identificar o maremoto que dentro de si cabia. Seu orgulho era sentir o que sentia...

Senhora de mãos escorregadias. Nada lhe pertencia. Apegou-se, então, aos laços presentes e invisíveis que constituía, e ao seu caderninho de remendos e poesia. Assim se dividia: a mulher e a menina. Há quem diga que era triste, há quem diga que de tanta felicidade Luiza luzia... Dependia do olhar de quem a via? Especulo que era prolixa. E via-se doente como o mundo de jornais expressos e internet informativa, só porque falava em tópicos, como quem quer desnudar-se, desmanchar-se, sem trazer incômodos.

Respirava com cuidado. Já lhe haviam dito que carregava consigo algo intimidador. Talvez porque não perdia a mania de ir até o último gole, expondo-se a maiores danos na vida, e há sempre um sadismo na dor que se sente. Ter um corpo era por si só, um desafio. Por isso, a cada queda, mais força e fé ganhava na vida. Nada temia, seguindo impunemente torta na vida. Por isso intimidava... Como podia? Ao invés de ganhar no rosto feições mais reclusas, mais se integrava à essência do si e do outro e mudava, todavia de ar, a fisionomia.

A cada réveillon pedia ao universo paz no coração. Viver era cada vez mais essa aproximação. Não podia ser gente. Nem bicho. Mas no peito tinha a certeza de que se pensasse muito em alguma coisa, poderia tornar-se ela mesma a própria coisa. O último estágio...

Todavia, a menina, que morava na superfície da vida, era mar e não sabia. O desenrolar dos seus fatos corriam desgovernados, velozes, e nela o que se mantinha eram rastros mesclados na memória e dores jamais esquecidas. Quem a conhecia assim, tão abnegada e indecisa, não imaginava que para sentir, amar, viver e ver tudo o que podia, era ela, necessariamente, sombriamente, tão egoísta e vaidosa como essas senhoras terrenas de olhares enraizados, quiçá ainda mais o seria... Porque se não podia concentrar-se ao próprio discurso ou aos fatos práticos da vida, era porque se orientava ao alheio de si mesma, ao alheio das coisas, e todas as coisas lhe diziam respeito não sendo fixas. Nisso era incisiva. Ser párea e adaptável. Era a única forma de ser que compreendia como digna. Alimentar sua alma frágil de borboleta e sua aparência de flores coloridas.

A cada metamorfose vivida através do outro, mais dentro de si se aprofundava e mais e mais se desprendia... A primeira comunhão com Gustavo...


II - Gustavo


Namorou toda a vida. A memória ainda viva daqueles anos de flerte, quando se fez mulher para ele... O homem mais incrível que o mundo conhecia.
Já se via definida e feliz ao subir as escadarias da igreja que desde criança bem conhecia.
Quanta gente naquele dia... Entregar-se-ia de vez àquele homem, cuidaria de uma vida entre os intervalos das classes de filosofia...
Dormiriam juntos numa bela casa. Daria-lhe uma prole saudável e vegetariana; o seu corpo e todas as névoas da sua cabeça, o peso de uma vida... Não descontava da relação aquela velha enfermidade sem nome. Não podia... Era o pulso de vida nas veias, que lhe cobrava e lhe perseguia.

... A imagem alvoroçada da sua tia. A madrinha. 
Aquela boca pintada e sorridente a corrigir suas espaldas sofridas, já acima da escadaria.
Fugir! Era o que melhor ela sabia...
Obedeceu. O cronômetro da fuga: tic tac, tic tac, tic tac...
- Não! O despertador não!... 
Que estranho! Que estranho que eu corria! Um sonho...

Viu o namorado. Riram demasiado. Verdade que, no fundo, ele, sempre, levemente, preocupado; e ela, sempre aflita, sempre compreendida, pelo homem mais irmão que em sua vida já existira...
Causava danos. Não entendia. Era só o que ela sentia! "Preciso ser de verdade!" - ela dizia.

... Seis anos daquele amor talhado na personalidade!...
No espelho, não era mais ela. Não sabia o que era, todavia...
Sabia o que via: dois corpos; a angústia repousada, tatuada na borboleta dos ombros dela; uma única vida...

Foi então naquele dia, na sala, que aquelas mesmas pestanas largas, que escutavam, apaziguavam e lha sacavam da indefinição de sua existência fina, finalmente diagnosticaram:
- É a vida concreta que te aprisiona, Luiza! Não nascestes para a superfície da vida, tampouco para o caos da disputa. Quite-se disso. Reinvente-se na arte que, por ti, lanço-me ao mundo!
Como o amava! Quitar-me-ia da alienação de um trabalho explorado!
Mas algo em mim esgotara-se naquele sorriso, naquela infeliz alegria...
Então amei tanto, mas amei tanto, que não pude mais amar a mim mesma. Não nasci para a vida... 

Gustavo, lhe calei com meu corpo nesse dia. Mas sonhei... 
Sonhei que me metamorfoseava e sofria.  
... Uma borboleta negra e gigante de mim apoderava-se, e eu a consumia.
Entendi! A mudança... Tomar outra forma. Tragar esse mundo que me devora. Sozinha! Hai daquele que bem-feitorasse-me a vida!

... O carro que levava Augusto... atropelara-me na esquina...

 II - Augusto

Augusto tinha algo de irresponsável e lindo... Um olhar de promessa, desolado e controverso. Maresia...

E foi naquele incidente da vida que ela soube de vez que dele não escaparia.
Era uma criança quando o conhecera; ele já iniciado nas artes da conquista. Mas entre eles nada existira além dos pais amigos, cervejas conservadoras no calor dos domingos e ela com aqueles mesmos olhos de pirralha perdida...

Anos a fio, caminhos perdidos e, agora, uma equilibrista sujeita ao risco de modificar toda uma vida e todo um destino...

Verdade que além do recíproco desejo do corpo, entre eles havia um fosso. Ele, a admirar a sagacidade da menina, que fazia escolhas tortas como tentativa de desembrutecer o mundo, e ela, a levar-se na dependência da dança que ele regia. Mentalmente feminista...

... Encontrou-se com Gustavo noutro dia e rompeu de vez com a velha comuna...
Precisariam agora reinventar-se; retomar um corpo estranho e, para cada um, o direito de uma nova e singular vida... 

... O  encontro planejado com a ansiedade de Augusto... 

Aqueles olhos mareados que despiam, mais aqueles jogos... De nada serviam.
Augusto era sedutoramente falso.
Os olhos dele diziam muito, assim como sua solta língua... mas nada procedia. 
Tudo revertia e ela sempre à espera, na saída, com a culpa do mundo, posto que senhora de uma ânsia esmagadora para os ombros desses homens altos... 
O tipo? Nelson Rodriguez  um dia descreveria...

Augusto não tinha coração vermelho e não a perdera para o Green Peace, como entre piadas dizia. Perdera-lhe para a busca, para o egoísmo nascente daquela menina que, depois de esgotar-se em doação e tentativas, outra vez, fugira.
Nem Gustavo, nem Augusto repousavam mais em seus sentidos. Já tornara-se uma mala vazia com o corpo de paciência, a pousar na superfície de um aeroporto. 

Sozinha, correu então o mundo, para descobrir no alheio o oceano de si mesma, uma perdida América Latina... 
E foi num Caribe que vomitava discursos à beira mar em ruínas de guaguancó que descubriu-se Cuba musical e sofrida.

Á prova estava um Fidelismo. E uma pulga que coçava, a iniciar estudos de marxismo...

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