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Chapéu, calça, mocassim

 Há em mim um espanto de chapéu, calça, mocassim mau-amado, ele me espanta, me reclama,  me arranha, que me derreto maldizendo a mim. sexo contido,  assim, íntimo, do avesso, goza em mim range-me os dentes e, assim, mau-querendo, encaixa-se tão bem dentro de mim.  Há em mim um espanto - que me insiste de homem - que me revive sem nome,  hoje espantei com rouge e baton mas vive entre meus peitos, o tirano petrificado no tempo de chapéu, calça, mocassim. 

Solar

Quando nesta madrugada perdi o fio da meada, eu vi o sol nascer sem você e me lembrei das nossas barracas. Crianças confinadas num condomínio de 12 prédios, 17 andares sabem fazer-de-conta. A gente morava no arranha-céus porque tínhamos asas. O plano era o de sermos as primeiras a ver o primeiro raio de sol despontando na passagem. E quando ele saia redondo da montanha do Laranjal, era o auge. Tempos depois, quando descobrimos que do outro lado do planeta os japoneses roubavam nossos primeiros raios de sol, você começou a dormir, sensata. As vezes o sol trazia a famosa "paia-piscina-vevete" com o Zé Ramalho alto do nosso pai pelo quarto... E ficávamos com aquela "cara de Thays"!... De todas as brincadeiras da nossa infância, é ele, o astro-Rei, nosso primeiro amigo. Quando a janela da alma se abre, inda peço a ele pra iluminar teu pensamento, ser teu guardião, trazer inspiração e um samba bom pra quem cedo madruga em reverência e faz-de-conta na recordação.

Ela

  O coração ainda sangra E a Vida vez ou outra ainda espeta  A Dor só quer saber-se viva, renitente. Ventou, passou água fria, água quente... Coração sangra E ela me sorri orgulhosa e sem dentes. Alimenta-se da minha ferida, Oh, cruel parasita! Não sou eu a louca da casa? Meu Deus, tira esse rato da minha mesa!  Mas minha prece não percorre a Terra,  não sabe subir até Deus. Ecoa. Não vês que acabou a festa? E passou o tempo, passou o vento  e a vassoura nos pés dela. Como um jumento que empaca, Fomos da sutileza aos pontapés, no tapete da sala. E a Vida piadista, que não perdoa,  ainda espeta. Mais ela sangra na minha janela, e na mesa de jantar, e na frente dos convidados, e no banquete principal, Me espanta. Já pus até no colo,  Admirando-a como a uma criança,  mas é ingrata, não se consola e me fere. Eita que dói e não pára,  me desonra e desobedece! Lavei as minhas mãos Mas ela, então, lacrimosa e sem dentes, permanece.

composição

nunca compus versos, nem rimas,  nem música.  compor é aposentar armas,  desapego. não pode ser tarefa do vento,  nem possessão mediúnica. hoje, só hoje, decidi compor com o tempo,  nem rimas, nem versos, mas habitei-me entre meus extremos  - sim e não: partes dissonantes de um caminho uníssono.  Peregrina, nunca pude parar no caminho. observar a lua de passagem é meu exercício. então sigo me equilibrando,  compondo choro e riso,  pisando em pedras como em ovos, até que deparei-me com uma nascente:  sentimento inédito.  nunca que me percebia cruzando um caminho de Compostela quando adentrei minha floresta. Desovando pedras, percebi uma melodia no caminho.  - poesia é profecia. Sê amiga das palavras:  uma velha me dizia, que elas traçam o meu destino. 

restos

 odeio-te em meus recantos odeio-te nesta tarefa incessante de remover detritos de aspirar teu pó e catar teus cacos.  odeio pisar na tua terra e sentir-me estranha na tua aldeia odeio tua saída desastrada e desonesta da minha vida e ter de conviver, todos os dias, com esses restos de afeto.  odeio-te quando revira-me de esquecimentos e não encontro remédio odeio-te em meus versos.

Tarde de chuva

 Hoje chove em Rio Branco e me recordo do cheiro da chuva no quintal da minha avó. Ela ainda mora lá onde o vento faz a curva.  Tempo passava e eu não contava as horas observando a roda de fiar incessante da minha bisavó em sua máquina de costura. Como era bom simplesmente observar, sem ter que aprender coisa nenhuma, apenas observar.  Sinto saudade de quando a gente corria para tirar as roupas do varal antes de cair a chuva, e de pentear os cabelos ralos da cabeça morena do meu avô e ouvir as histórias mestiças da minha bisa...  Ainda que as nossas heranças turcas e indígenas nunca houvessem existido, elas me moldaram, no sotaque de guerra que a minha bisa nordestina nunca perdeu.  As suas dores a tornaram desconfiada de tudo e de todos, mas nunca lhe roubaram a ternura e o sorriso banguela.  Saudades de ver vovó colecionando selos de todos os jornais que ela lia, todos os dias, para checar as informações, muito antes de se popularizarem as fake news dos anos doil mil. Saudades do seu

In natura

 Passarinho azul me ensinou a contornar cada fissura com um belo cercado e seguir de fronte leve porque in natura tudo se transforma ao seu gosto orgânico compassado Passarinho azul não se afogou de Bukowski para conduzir-me ao coração da mata escura, esguia como um caçador. De silêncios edificou-me a fortaleza,  reergueu-me não sei d´onde quando a mente aterrissou. Nunca ouvi sua palavra, mas lá no Sul profundo de minh´alma, a sós,  um canto livre, ele bradou.