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Prece

Faça-se de mim uma oração das terras de longe! Porque milhas me fazem crescer, porque preciso situar-me no não-lugar da sua cama, debaixo do seu edredom - essa imensa colcha de retalhos  de tudo o que não pertenci, de todo o meu vir-a-ser... A vida é tão frágil, breve, cheia de traços leves... - ensina-me a arte da sutileza! Quero me perder de hojes: no cheiro do ar, no gosto do vento, na fotografia desses mil olhares... Poder abrir brechas no coração asmático, aprender o ser-breve com a caneta.

La-passante

Recebi uma foto da nossa felicidade desnuda de tempos atrás... Blue jeans, motocicletas e cachaça de gengibre. O bar da cachaça trazia sua crônica às calçadas. Na Lapa, outro aroma submerso de cores pastéis... O não-ser dali concedia-nos asas de desbravador A festa Maracangalha carregava a poesia da vida comunal dos Novos Baianos - É que éramos retirantes, seu moço, de um bairro distante, fluíamos de amor aos goles de cerveja - ela ainda era só esplendor. Uma palavra: pureza. Neste dia eu me libertava de um amor platônico que me consumira dois anos acadêmicos. Resolvemos dançar a dor. Ali perto, na praça da Cruz Vermelha, ainda não rolava o Samba do Bigode, mas um encontro regular de gente - gente querendo transcender o ego, transgredir. Assistíamos filmes marxistas, líamos Marx como poesia, e dividíamos nossas humanidades da psicanálise anterior - buscávamos emancipação e amores livres. Ainda não era materialismo, era o desejo de comungar prescindindo de Deus - ele e

Finado

Não é falta de amor, as vezes ele é grande, bem como grande é a gratidão. É que você me exauriu... - Certas pessoas exaurem a gente, assim sem razão. Já sou incapaz de restabelecer contato, já quebrei a ponte. Talvez porque precise ser ilha: ter de morrer um velho, ter de brotar um novo... Não houve acordo. Morri em posse do mesmo documento. Perdoe estas sem-razões, tamanho desconserto... Se há de nascer algo, tenho de me parir primeiro.

Farto

... E foi entre o voluntário e o involuntário do amor que você em mim me empobreceu, até virar triste o que fora êxtase. No ato, eu insaciável, chorei à procura de um significado que dignificasse o inadiável... A carne trêmula. Só carne.

Tua ausência

Tua ausência me libera da tua ausência Tua ausência libera a minha ausência, - meu zelo por miudezas, minhas plantas, meu cão, meu direito, meu eu mesmo. Vou ao cinema, embelezo-me, atraio, danço como um pavão... Vôo à tua sombra. Concedo-me o tempo que lhe desmancho, lhe dedico, lhe curvo. Viro bicho, puro instinto, rebelde, livre, lindo... triste. Um coração que nasceu cativo.

Ponto cego

Tua ida, tua vinda... - este pêndulo! me interioriza. E é neste ponto cego que hei de encontrar forças para tocar nosso barco, para remar o teu tempo. Só; comigo, eu espero... vou me destoando, nidificando, desabotoando, emudecendo. - precipito, esquento, seco viro cinzas... Não faz mal. Há de ser comigo, coração inseguro! Eu seguro - com forças que ainda não tenho no meu ponto cego - anuvio, faço sol... Eu ainda espero.

Uma casinha modesta

Construí uma casinha modesta, de madeira e alvenaria no coração da cidade. Verde na varanda, bebedouro de beija-flores na janela, borboletas polinizadoras, um aquário. Água sempre fresca da velha moringa de barro... Chiquinho ainda espalha tapetes, agora na porta principal da casa. Frida espalha sua poesia-de-andar-felina nas tábuas corridas da sala. À sombra, o reflexo... Paredes sustentam sedutoras e repousadas mulatas de Di Cavalcanti. Micos habitam mangueiras. Vejo um ninho de pássaros... azul por todos os lados, tudo a apenas cinco minutos do asfalto engarrafado. À noite apavoram-me indefesos morcegos. O lar é feito de aconchego, com vista para o cinza-alto dos "apertamentos". Preciso de tua mudança para dormir doce em teus braços e daquela ajuda com a escritura (!): são dois quartos, uma cozinha; banheiro, sala, varanda, tintas; letras harmônicas justapostas a cada passo, cada traço da arquiteta. A mesa é longa para o pão, para a família, amigos-frutos, as seme