Crocodilo

Ironicamente, eu fui a primeira a procurar pelo senhor Roberto Suzano Ferraz no Hospital Geral. Provavelmente eu era o primeiro A de sua lista telefônica para o caso de uma chamada de emergência. – Sim, eu sou filha dele – disse com a voz trêmula ao desconhecido, que me passava o endereço do hospital para onde a ambulância seguiria. A primeira a chegar e a última a ouvir seus batimentos cardíacos.

– Filha, guarde uma coisa no seu coração. É muito importante saber como chegar e como sair, em tudo na vida. A forma como você começa determina muito a forma em que vai viver depois. –  Essas foram suas últimas palavras após o acidente. Eu ainda tinha quinze anos. O que ele fez por merecer para sair da vida assim? Teria ele entrado na vida também de supetão? Acho que não. Era um homem ponderado demais, cindido demais, que manteve dois relacionamentos amorosos em paralelo mais por covardia do que por paixão e porque minha mãe nunca foi mulher de se deixar para trás. Ela foi a primeira de sua vida, mas era pobre, e então veio uma coquete, mais adequada para seu novo começo em uma família tradicional, de iguais, até que, à contragosto, eu nasci, a primeira filha.

Nunca me faltou nada. Tive tudo: escola, livros, cursos, a visita do meu pai uma vez por semana. Mas fui sempre a marca de sua vida confusa e enrolada, capturada entre dois mundos, de duas mulheres raivosas que disputavam até suas cuecas, principalmente depois de gerar um fruto híbrido e anômalo como eu. Pagou o preço de ser cobrado toda a vida e nunca pode escolher nada pra si mesmo.

Se ele me amou? Sim, sempre, apesar de. E agora eu não vou mais brigar pelo seu dinheiro. Que fique tudo para as minhas “meio” irmãs, ou então que minha mãe continue brigando pelas cifras: crédito pela humilhação - nenhum homem depois pôde suportá-la, restando-lhe a convivência inseparável da própria raiva: foi assim que ela ficou depois da morte do meu pai, como um cão. Eu também mudei, tenho as mãos disformes desde que saí daquele hospital com os ecos daquelas palavras e meio verde, dura, camuflada quanto as incertezas da vida e do futuro. Foi então que comecei a escrever e reescrever sem parar, como quem conjectura por respostas, como quem busca algum sentido.

Agarrei-me às suas mãos com desespero, sem conseguir acreditar. Então é isso, acabou? Suas palavras ainda giravam... “Filha, é importante saber como chegar e sair, em tudo na vida. A forma como você começa determina a forma em que vai viver depois”. E como é que eu comecei? Como vou terminar? Ele não estava mais ali para nenhuma resposta, para nenhum diálogo...

– Vai se chamar Amanda. Vem do latim Amandus, significa digna de ser amada. - disse meu pai, orgulhoso, pouco antes do meu nascimento, mas a verdade é que por mais que eu me esforçasse para fazer valer o meu nome, nunca fui aceita. Violência verbal era o que eu comia de café da manhã, almoço e janta, com dedos na cara e vergonha.

– Então tem outra mulher? E vai casar-se com ela agora, depois de me enganar todos esses anos? – a barriga de minha mãe já sobressalente...

– Matilde, a nossa história nunca teve futuro. Você tinha outros planos, lembra? Sempre quis viajar com o teatro, conhecer o mundo... Você nunca engoliu a minha família, menos ainda agora, que assumi a empresa. Eu preciso de um pouco de paz. Tem certeza de que quer ter essa criança?

– Você é um canalha, Roberto! Saiba que com ou sem você, eu vou ter essa criança. Meus sonhos se desfaleceram, sim, mas você não tinha esse direito...

– Matilde, eu sempre amarei você e, com o tempo, hei de amar essa criança também. Ok, esquece o que eu disse, mas quanto a nós dois, acho que não funciona mais...

– Como se atreve?!

– Como se atreve? - isso sempre me dizia minha mãe, quando eu danava a desejar aquilo que eu não poderia ter. – É arroz com feijão e macarrão, sim. Amanhã você pede ao seu pai pizza, sushi, chocolate... É pra isso que ele serve!

Quando chegava em casa, ele era o meu sol. Eu mal sabia que não fosse pela força e obstinação de minha mãe, eu jamais teria (me) vingado. Mas dona Matilde era uma mulher difícil. – Cão que ladra não morde, minha filha... – dizia meu pai, condescendente, em sua casa dois: um sobrado humilde, úmido, com um quintal grande nos fundos, cheio de plantas. “Pode não morder, mas assusta e intimida”.

Quinze anos depois do acidente, nós continuamos fixas no mesmo endereço. Ela nunca mais se relacionou com ninguém, embora continuasse bela, forte e segura. Amou o meu pai até o fim, mesmo que ele não merecesse. Acho que foi ela a que mais sofreu com sua partida e a que, dele, menos recebeu. Por isso, hoje, jura que jamais se deixará subjugar por ninguém e eu, trinta anos agora, posso fazer o que, por amor, ela nunca fez: sair, morar em outro país com meus próprios recursos, seguir o último conselho de meu pai.

Seria simples: fechar a porta, sair na ponta dos pés, a semente indesejada no útero partindo do solo que lhe criou por uma promessa, mas como abrir mão de tudo o que a indiferença me deu? Não, não se trata de um desejo masoquista, não gosto de ser maltratada, mas defronte ao espelho do meu quarto pequeno, além da cama de solteiro, vejo a minha cara larga e selvagem: olhos indecifráveis, muito marrons; a casca dura - poderes sobrenaturais para aturar a mim mesma. Com esses presentes fui à caça no mundo, sem deixar que nada, nem ninguém, me derrubasse.

Bote certeiro, puro instinto, o alimento sob o céu de minha boca pressiona as glândulas lacrimais. Esforço de mastigar, esforço de sobreviver. Eu, que não derramei uma gota no enterro de meu pai, agora não consigo evitar a torrente. Tentaram me matar de muitas maneiras, mas (me) vinguei, duas vezes: vivendo, porque nasci, porque ele morreu.

Lágrimas de crocodilo, ecos do estômago: ele se foi antes de mim; livre, agora, eu permaneço.



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