Ensaio II



Eu quero escrever uma história que não fale sobre a minha vida. Eu quero contar e revelar as belezas sutis que escapam e circudam a vida dela.
Quero muitos pontos finais para conseguir respirar. Conhece, o leitor, oráculo mais poderoso do que o silêncio?
Quero um conto cru, tão simples, tão simples que economize a escrita. Que economize os papéis.
E me enredar no fio que tece o Criador e tece também nossas vidas comuns. Ser comum é a meta desta minha vida.
E para terminar, quero um desbastador de argila, para eliminar todo o excesso que nos confundiu desde o princípio da Criação.

Eu não quero curar. Esse é um conto que dói porque nasce da alegria da vida. Vida... Quantas vidas existem em uma só vida?

A busca por essa história começou há mais ou menos quatro anos. Eu, uma menina, despontando na vida. Via uma janela. Todos os dias. Xamãs acenavam e eu ia furtiva. Despertava com o peito transbordando de não-sei-o-quê.

Um dia bati na porta de uma astróloga. A casa era ampla, vazia. Tábuas corridas de madeira... Meu amigo ogã velava seu atabaque na sala. Ele olhou pra mim, sorriu, mas ali permaneceu.

Saiu de um dos aposentos a astróloga. Ela era duas: era ela e sua anciã - talvez mãe... cujo cordão umbilical nunca se rompeu? Ela era jovem e trazia uma cascavél enrolada em seu pescoço; a outra, uma senhora careca, envolta numa bata azul do pescoço aos pés. Pediram que eu aguardasse...

... de novo uma janela. Vi a mim e minha mãe caindo de um edifício espelhado, muito alto, no centro da cidade do Rio de Janeiro. A gente brigava e não via que beirava o fim. Parte de mim observava o declínio.

Chamou, a astróloga. Entramos numa sala escura. Ela projetava a história da humanidade. Mostrava a Criação numa retrospectiva incrivelmente completa e curta. Além-tempo, enciclopédica. Ela ensinava Eva, perdoava os meus pecados. Vida após vida. Vida-morte-vida.

Não revelou meu futuro. Depois da consulta, me deixou um tempo a sós, confortável para partir quando bem entendesse. Beirei outra vez a janela. Vi, de novo, minha mãe e eu caindo de um edifício espelhado, muito alto, no centro da cidade do Rio de Janeiro. O além-tempo. A gente não brigava e não via que beirava o fim. Estávamos voando, percorrendo os ares da cidade. Sorrindo...

- O que ocorrera naquela sala que modificou a qualidade da sua queda, na janela, com sua mãe?, perguntou a analista.
Fantasia, fantasia, fantasia... Eu não encontrava contornos pra mim. Eu, que amava as palavras...
Devia caber na realidade - ela dizia, freudiana...

É verdade. Eu devia caber no mundo.

Mas essa fantasia, de quatro anos atrás, fôra toda a verdade transcorrida ao longo dos meus últimos anos. Símbolos premonitórios do meu caminho, para retomar o fio desta meada que vos conto.

Sim, precisei conhecer a simbologia do catolicismo com os meus avós, precisei saber de Eva e aprender a rezar novena - salvação de novembro.. - precisei saber de candomblé e ouvir suas músicas, precisei conduzir um cinecluble e de três rituais de ayahuasca com os índios Yawanawá. Precisei me apaixonar por meu guru. Precisei dar aulas de inglês e permitir que a nova língua modificasse profundamente as bases da minha comunicação, a minha forma de pensar e organizar minhas ideias. Precisei que o inglês me deixasse simples e sem rodeios.

Precisei abraçar meu signo de Leão e conhecer mãe e filha que conduzem lindos rituais de bruxaria em Niterói - o outro lado sossegado da Baía de Guanabara. Precisei meditar, ver as ondas quebrando no mar... e meu caminho, assim, se fez.

Encontrei a personagem que faltava para tecer a minha história. Quanto mais viro bicho, mais confio nos sinais do meu corpo, no cheiro da maré da mudança.

Ananda.











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