Descaminhos
...E imersa em uma ausência de anos a fio, em um completo descaminho, chega o dia do reencontro...
Despertei com o habitual peso da noite a reclamar pela inércia; escovei os dentes; lavei o rosto; li meu jornal matutino; bebi, sem açúcar, meu café amargo; saí com o cachorro pelo quarteirão e, em 40 minutos, estava pronta.
Como quem amarra o cadarço do tênis, estava eu na mesa do Café a esperar... Em um misto de especulação, desconforto e obrigação, blasfemei aquele encontro no horário crítico da manhã.
Eu... com tantas coisas a fazer. Por quê não disse, hoje não?
Na minha frente surgiu ela. Moderninha de aparência, com novo (ou velho?) look: cabelos curtos, esbelta, com um olhar afável de quem, em vão, deseja reconstituir e restabelecer, em instantes, o vazio de mais de uma década que 5 anos deixaram...
Nos abraçamos e eu só pude sentir saudade... Uma saudade consciente de sua perpetuação.
Já éramos outras...
Como que por obrigação, nos interessamos uma pelo descaminho da outra. Uma, cada dia mais mística e à procura de sabe-se lá o quê. Outra, a um pé do altar e expirando completude.
Uma, apaixonada por cinema e pela liberdade acadêmica, submersa no aguaceiro do inconsciente. Outra, assegurada, militar formada, disciplinada e realizada.
Falamos de nossas famílias e sorrimos ao recordar, entre espaços de silêncio, de nossa anterior vida singular, de nossos desvarios, ausências de limites, travessuras, dores e momentos felizes, os quais compuseram aquela inabalável amizade, ou seria casamento?
Nada cedíamos porque não havia a quem agradar. Éramos siamesas. Quem a uma atingia, à outra também afetava.
Não havia qualidade, defeito ou capacidade de uma que não se estendesse a outra...
Eram as mesmas dores e as mesmas alegrias em um completo ser desintegrado.
Não tínhamos identidade, nem certidão de nascimento. Também não tínhamos CPF. Estávamos juntas no mesmo ser, no mesmo laço, no mesmo caminho, para o que desse e viesse.
E foi assim que um determinado momento-câmera lenta captou o desencontro espacial entre as siamesas e, num registro cada vez mais lento, ainda pode ser visto o tempo, em sua constante e desigual criação dos modais da vida.
Após a separação e as remodelações, reencontramos, pois, nossas identidades e certidões. Também fizemos e, desde então, portaremos para sempre, nossos CPFs.
Até hoje, o medo de uma segunda morte fez com que eu jamais perdesse os documentos!
... E na mesa do café, conversas preenchidas pelo silêncio...
Meu retorno para casa foi habitual, como o daqueles que caminham a contar e ordenar os números de árvores e postes pelo caminho...
Meu e sozinho caminho.
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